sábado, março 03, 2012

Esta festa não é minha - Milan Kundera

Texto publicado em 1995 na Frankfurter Rundschau, com outros textos que celebravam o centésimo aniversário do nascimento do cinema.

O que os irmãos Lumière inventaram, em 1895, não foi uma arte, mas uma técnica que permitia apreender, mostrar, conservar e arquivar a imagem visual de uma realidade, não num fragmento de segundo, mas no seu movimento e duração. Sem esta descoberta da «fotografia em movimento», o mundo não seria hoje o que é: a nova técnica tornou-se, primo, o principal agente de embrutecimento (incomparavelmente mais poderoso do que a má literatura de antanho: spots publicitários, série televisivas), secundo, o agente da indiscrição planetária (as câmaras que filmam secretamente adversários políticos em situações comprometedoras, imortalizam a dor de uma mulher seminua estendida numa maca após um atentado...).
É verdade que existe o filme como arte: mas a sua importância é muito mais reduzida do que a do filme como técnica e a sua história é, com certeza, a mais breve de todas as histórias das artes. Recordo jantar em Paris há mais de 20 anos. Um jovem, simpático, inteligente, fala de Fellini com divertido desprezo trocista. O seu último filme, acha-o francamente mau. Conhecendo o preço da imaginação, sinto pelos filmes de Fellini uma humilde admiração, em primeiro lugar. É perante este jovem brilhante, na França do início dos anos oitenta, que experimento, pela primeira vez, uma sensação nunca conhecida na Checoslováquia, mesmo nos piores anos do estalinismo: a sensação de me encontrar na época do pós-arte, num mundo em que a arte desaparece porque desaparecem a necessidade da arte, a sensibilidade, o amor por ela.
A partir de então, verifiquei cada vez mais frequentemente que Fellini já não era apreciado; mesmo tendo sido ele a conseguir fazer da sua obra toda uma grande época da história da arte moderna (como Stravinsky, como Picasso); mesmo tendo sido ele a realizar com uma fantasia incomparável a fusão do sonho e da realidade, esse velho programa-desejo dos surrealistas; mesmo tendo sido ele que, no seu último periodo (particularmente desconsiderado), soube dotar o seu olhar sonhador de uma lucidez que desmascara cruelmente o nosso mundo contemporâneo (recordemos Prova de Orquestra, A Cidade das Mulheres, E la nave va, Ginger e Fred, Entrevista, La Voce della luna). 
Foi neste último período que Fellini se confrontou violentamente com Berlusconi, opondo-se à sua prática de deixar interromper os filmes pela publicidade, na televisão. Neste confronto, distingui um sentido profundo: tendo em conta que o spot publicitário é também um género cinematográfico, tratava-se do confronto entre duas heranças dos irmãos Lumière: o confronto do filme como arte e do filme como agente de estupidificação. O resultado é conhecido: o filme como arte perdeu.
O confronto teve o seu epílogo em 1993, quando a televisão berlusconiana projectou nos ecrãs o corpo de Fellini, nu, desarmado, em agonia (estranha coincidência: foi em A Doce Vida, de 1960, que, numa cena inesquecível, a fúria necrófila das câmaras foi surpreendida e mostrada, profeticamente, pela primeira vez). A viragem histórica chegava ao fim: como herdeiros dos irmãos Lumière, os órfãos de Fellini já não pesavam grande coisa. A Europa de Fellini era substituída por outra Europa, muito diferente. Cem anos de cinema? Sim. Mas esta festa não é minha.


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