terça-feira, dezembro 28, 2010

A Sombra do Vento

Ando a ler isto. Imperdível, especialmente a personagem caricata de Fermín Romero de Torres:

Naqueles dias eu queria crer que o meu pai se ressentia por eu passar tanto tempo com os Barceló. O livreiro e a sobrinha viviam num mundo de luxo que o meu pai mal podia farejar. Pensava que o aborrecia que a criada de don Gustavo se comportasse comigo como se fosse minha mãe e que o ofendia que eu aceitasse que alguém pudesse desempenhar esse papel. Às vezes, enquanto eu andava pelas traseiras da loja a fazer embrulhos ou a preparar uma remessa, ouvia um ou outro cliente gracejar com o meu pai.
-O que o senhor tem de fazer, Sempere, é procurar uma boa rapariga, que agora o que mais por aí há são viúvas jeitosas e na flor da vida, o senhor bem me entende. Uma boa moça ajeita a vida a uma pessoa, meu amigo, e tira-lhe vinte anos de cima. O que um par de mamas não consegue...

(...)

-Quer dizer que eram amantes?
-Você gosta mesmo de folhetins, hem? Olhe, eu na vida privada da Nuria nunca me meti, porque a minha também não é propriamente para emoldurar. Se um dia você tiver uma filha, bênção que eu não desejo a ninguém, porque a lei da vida é que mais tarde ou mais cedo nos despedace o coração, enfim, como ia dizendo, se algum dia tiver uma filha começará sem dar por isso a dividir os homens em duas categorias: os que suspeita que dormem com ela e os que não. Quem disser que não, mente com quantos dentes tem na boca.

(...)

Toda aquela reticência mudou radicalmente no dia em que Fermín Romero de Torres descobriu Carole Lombard.
-Que busto, Jesus, Maria e José, que busto! - exclamou em plena projecção, possuído. - Aquilo não são mamas, são duas caravelas!
-Cale-se, seu grosseirão, ou chamo imediatamente o empregado - resmungou uma voz de confessionário situada um par de filas atrás de nós. - Não querem lá ver a pouca-vergonha? Que país de porcalhões!
-O melhor é baixar a voz, Fermín - aconselhei.
Fermín Romero de Torres não me ouvia. Estava perdido no suave vaivém daquele decote milagroso, com o sorriso arroubado e o os olhos envenenados de tecnicolor.

(...)

-Não sei onde enfia isso tudo, Fermín.
-Na minha família fomos sempre de metabolismo acelerado. A minha irmã Jesusa, que Deus tenha, era capaz de lanchar uma tortilha de morcela e alho francês e seis ovos a meio da tarde e depois portar-se como um cossaco ao jantar. Chamavam-lhe a Fígados porque sofria de mau hálito. Era igualzinha a mim, sabe? Com esta mesma tromba e este corpo serrano, bastante magro de carnes. Um médico de Cáceres disse-lhe uma vez que nós, os Romero de Torres, éramos do vínculo perdido entre o homem e o peixe-martelo, porque noventa por cento do nosso organismo é cartilagem, maioritariamente concentrado no nariz e no pavilhão auricular. Na aldeia confundiam muito a Jesusa comigo, porque a desgraçada nunca chegou a desenvolver peito e começou a fazer a barba antes de mim. Morreu de tísica aos vinte e dois anos, virgem terminal e apaixonada em segredo por um padre santarrão que quando se cruzava com ela na rua lhe dizia sempre: "Viva, Fermín, estás um homenzinho". Ironias da vida.


1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom! Li a colecção toda sem conseguir parar :)