sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Obra - 1º Capítulo

Aqui fica cumprida, em parte, a promessa feita aqui.
Eis o primeiro capítulo da obra que comecei a escrever:

Um dia aparentemente chato, quente e parvo. Um dia aborrecido como muitos outros. Um verão em Braga não é pêra doce. Um verão em Braga a ter aulas muito menos. Um barulho insuportável na cantina. Um dia parvo, uma multidão parva, uma vida parva. Um reino da parvoíce. Duas pessoas a dispararem banalidades à minha frente. A minha quase eternizada “mais-que-tudo”, queridíssima namorada Teresa, e a sua amiga-mascote de estimação, cujo nome nunca me recordo. Dois seres que são um só. Um sendo uma mera extensão do outro. Talvez um simples acessório.

As vozes delas provocavam um excesso de fritura nas batatas, com um sabor maravilhoso já de si. Fui tomado de assalto por uma sensação de náusea. Só me apetecia vomitar aquele quotidiano para cima de alguém importante. Só porque podia. Só porque sim. Um daqueles momentos belos em que a nossa existência parece uma piada foleira contada num bar de alterne. Com brilhantina no cabelo e uma vestimenta azeiteira. Numa matiné de domingo. O autor desta história estava notoriamente a gozar comigo. E elas a conversarem sobre as últimas promoções das suas lojas favoritas de pronto-a-vestir. Aquilo que está mais na berlinda. Será que “berlinda” é a palavra mais na berlinda para expressar “últimas tendências”? Não me parece que se importem com o que penso ou deixo de pensar. Tanto melhor. Se raciocinar em termos parolos não vai haver ninguém que me censure.

A Teresa continuava a tagarelar incessantemente. A cantina-orquestra actuava à minha volta enquanto a soprano cantava mesmo ao meu lado. Os cabelos castanhos pelos ombros criavam uma parabólica protectora, apenas permitindo ver os seus finos lábios alternadamente entre gesticulações. Movia-se, insinuante, para trás e para a frente na cadeira, ao mesmo tempo que a sua “pochete” acenava afirmativamente a tudo o que a dona dizia. Teresa Salgado, a minha Teresa, mesmo à minha esquerda, com todo o seu à vontade e todo o seu glamour. Em que rifa é que me saiu este prémio?

Vi-me pintado num quadro infeliz da minha autoria. Talvez o resultado tenha surgido de uma inspiração obtida à base de estupefacientes. Um sujeito bastante ébrio costuma desequilibrar-se e cair, mas eu tinha-me aguentado verticalmente até aquele ponto. Havia chegado a hora da ressaca, as dores de cabeça, as tonturas e o juízo. Sentia-me parvo, tal como em todos os dias que sucediam a consumos excessivos de substâncias não recomendadas a menores.

Chegara a altura de ponderar e desesperar, réu perante a minha consciência, qual fantasma do Natal Passado a bater à porta. As escolhas que tinham ditado este beco sem saída pareciam-me longínquas, difusas, como tivessem sido ponderadas e executadas numa vida passada. Não havia defesa, não haviam provas nem testemunhas, apenas um dedo apontado e um fardo enorme a pesar. Um enorme pesar.

Quando os sonhos morrem, dormir é um mero intervalo entre adormecer e despertar, um feixe de tempo insignificante. É assim que se fica submetido à execução de tarefas e actividades corriqueiras e monótonas. É assim que só se vive de dia, como uma engrenagem.

Levantei-me e fui em direcção à casa de banho.

-Onde vais, Jacinto? – foram as palavras que não ouvi a Teresa pronunciar.

Acotovelei as pessoas que estavam na fila à espera de um “almoço mistério”. As ementas, não raras vezes, estão erradas e trazem surpresas desagradáveis…

Entrei na casa de banho e passei a cara por água, a ver se arrefecia os motores já quentes, de tanto matutar. Ali, sozinho, sentia-me muito mais calmo, o barulho era menor e conseguia ouvir os meus pensamentos. Talvez estivesse a ter apenas um dia mau. Às tantas era isso. Um dia demasiado stressante, com uma carga horária elevada, trabalhos para fazer… Uma folga era bem capaz de resolver. Faltava às aulas de tarde e ia passear sozinho para o Bom Jesus. Desenrascava um piquenique à maneira e ficava tudo porreiro. Um tempo só para mim enquanto contemplava a Natureza e os avós a brincar com os netos. Nem mais.

Apressei-me a regressar à mesa. Momentos depois, preparava-me para avisar a Teresa do que se iria suceder.

-Teresa, hoje…

-Não vês que agora estou a falar? Tem calma contigo…

Aquilo irritou-me de uma forma extrema. Primeiro ignoraram-me e agora não queriam simplesmente saber o que queria dizer?

Só me apetecia mandar os tabuleiros pelo ar e fazer uma escandaleira em frente à universidade toda! Qual seria a reacção das pessoas perante um fenómeno tão anormal como esse? Às vezes ponho-me a pensar como é que as pessoas reagiriam se, durante uma cerimónia oficial, alguém ficasse doido e começasse às cabeçadas ao Presidente da República. Ou se, após receber a bênção, apalpassem o Papa. Interessante…

Fixei o olhar na máquina das bebidas a tentar adivinhar qual seria o próximo botão a ser pressionado. Tentava a todo o custo pensar noutra coisa, a ver se acalmava. O meu olhar esgazeado não tardou a chamar a atenção.

-Estás um bocado com cara de parvo… – comentou a Teresa.

-Acontece-lhe frequentemente, pelos vistos… – realçou a meia-leca.

Foi o fim da picada. O emplastro, agora, também mandava bocas?

Quando me preparava para descarregar um chorrilho de insultos aparece uma personagem inesperada. Vinha aos encontrões, a mandar pessoas literalmente ao chão. Sôfrego e suado, pára à minha frente e encosta-se à máquina dos refrigerantes para descansar. Estava a tentar dizer-me algo mas não conseguia.

-Xavier, senta-te e respira um bocado antes de falar, pá! – aconselhei.

-Não…há…tempo…a perder…

-Que foi, homem de Deus?

-A Luísa… Vou a Coimbra… Pedi-la em casamento…

Os meus pensamentos sofreram um solavanco. A minha vida podia estar confusa, mas o Xavier tinha-se passado de vez. Já não o via há uma semana. Talvez andasse em raves a meter ácidos e lhe estivesse a dar uma coisinha má. A alucinar. Ou então estava sob influência voodoo.

Perguntei-lhe: -Mas então o que é que eu tenho a ver com isso?

Ele foi mais ou menos explícito: -Preciso da tua companhia para não fazer nenhuma asneira pelo caminho. Além disso, é sempre bom ter um co-piloto para dar conselhos, não é?

Como seria de esperar, a minha resposta foi a mais indicada, vinda de uma mente equilibrada e racional:

-Oupa!

7 comentários:

NJRT disse...

O inicio de uma aventura que tenho a certeza que valerá a pena ler.

Lu disse...

A promessa foi realizada!
Aqui está uma aventura que parece promisora. Já me tens como leitora assidua...
Neste capítulo há várias expressões que, não sei como explicar, adorei! Como "...a nossa existência parece uma piada foleira contada num bar de alterne." e "O emplastro, agora, também mandava bocas?". Simpatizei com o narrador: ambos gostamos de passear sozinhos, ter o tal "tempo só para mim".
Agora espero pelo 2ºcapítulo.

lili@ana disse...

"Quando os sonhos morrem, dormir é um mero intervalo entre adormecer e despertar, um feixe de tempo insignificante." uma frase que resume uma vida inteira...o publico aguarda novos capitulos e espera a ultima sentença das personagens,com peripécias,dramas e ironias pelo meio.

Trivela7 disse...

Anates de mais obrigado pelo comment no meu blog,e a resposta à tua pergunta é Não!!
Quanto a este primeiro capitulo de muitos mais espero...
Não sei pk mas eu gosto mt d primeiros capitulos, afinal são eles k nos permitem perceber s a história tem rumo e se o artista tem qualidade... Axo k este primeiro capitulo reune esses rekisitos!!
Continua a postar os next chapters!!
xxx

Anónimo disse...

Gostei muito deste 1º Capítulo. Vou voltar para ler o resto. O livro já tem nome?

Hugo Monteiro disse...

Não, ainda não tem nome. Isso virá com o tempo. Surgirá por si só, quando estiver pronto. Como uma flor.

Anónimo disse...

então, não esqueças a água, o sol, e a redoma para o vento.
força com isso.