Mais um dia
Um dia aparentemente chato, quente e parvo, aborrecido como muitos outros. Um verão em Braga não é pêra doce. Um verão em Braga a ter aulas muito menos. Um barulho insuportável na cantina. Um dia parvo, uma multidão parva, uma vida parva. Um reino da parvoíce.
Duas pessoas a dispararem banalidades à minha frente. A minha quase eternizada “mais-que-tudo”, queridíssima namorada Teresa, e a sua amiga/mascote de estimação, cujo nome nunca me recordo. Dois seres que são um só. Um sendo uma mera extensão do outro. Talvez um simples acessório.
«But first things first», já diziam os Yankees. É indelicado não me apresentar. Para ser conciso, posso descrever-me como um «cão do mato» reformado que responde pelo nome de Jacinto, Jaz para os amigos. Cão do mato, porque sempre tive um espírito meio vagabundo e selvagem, reformado, porque já me deixei dessas andanças. Com 23 anos já sou um jovem idoso. Ou talvez um jovem preguiçoso. Amolecido? Não importa. Não interessa.
Estudava na Universidade do Minho há cinco anos. Finalista em Direito, aluno exemplar, modéstia à parte, uma característica que tenho como omniausente. (Nunca me dei com gente humilde. Os vaidosos são imbuídos de uma graça quase mística. Só não vê quem é ceguinho.)
Posso dizer que entrei em Braga algo desconfiado. Falaram-me maravilhas desta terra. Sempre fui ateu militante no que às expectativas paradisíacas concerne. Uma espécie de S. Tomé profano, digamos. A princípio a integração deu-se bem. Aquele ano de atraso no secundário tinha-me dado a estaleca extra que faltava a alguns dos meus colegas. Uns não se adaptaram ao ambiente. No ensino superior não se resolvem os problemas com os punhos. É preciso astúcia. Manha. Olho para a coisa. E na arte de observar, eu era o solista naquela ópera. Mas isto são dossiers com contas que não quero pagar agora. Não ando abonado de finanças. Nem de tempo.
As vozes delas provocavam um excesso de fritura nas batatas, com um sabor maravilhoso já de si. Fui tomado de assalto por uma sensação de náusea. Só me apetecia vomitar aquele quotidiano para cima de alguém importante. Só porque podia. Só porque sim. Um daqueles momentos belos em que a nossa existência parece uma piada foleira contada num bar de alterne. Com brilhantina no cabelo e uma vestimenta azeiteira. Numa matiné de domingo. O autor desta história estava notoriamente a gozar comigo. E elas a conversarem sobre as últimas promoções das suas lojas favoritas de pronto-a-vestir. Aquilo que está mais na berlinda. (Será que “berlinda” é a palavra mais na berlinda para expressar “últimas tendências”? Não me parece que se importem com o que penso ou deixo de pensar. Tanto melhor. Se raciocinar em termos parolos não vai haver ninguém que me censure.)
A Teresa continuava a tagarelar incessantemente. A cantina-orquestra actuava à minha volta enquanto a soprano cantava mesmo ao meu lado. Os cabelos castanhos pelos ombros criavam uma parabólica protectora, apenas permitindo ver os seus finos lábios alternadamente entre gesticulações. Movia-se, insinuante, para trás e para a frente na cadeira, ao mesmo tempo que a sua “pochete” acenava afirmativamente a tudo o que a dona dizia. Teresa Salgado, a minha Teresa, mesmo à minha esquerda, com todo o seu à vontade e todo o seu glamour. Em que rifa é que me saiu este prémio?
Vi-me pintado num quadro infeliz da minha autoria. Talvez o resultado tenha surgido de uma inspiração obtida à base de estupefacientes. Um sujeito bastante ébrio costuma desequilibrar-se e cair, mas eu tinha-me aguentado verticalmente até aquele ponto. Havia chegado a hora da ressaca, as dores de cabeça, as tonturas e o juízo. Sentia-me parvo, tal como em todos os dias que sucediam a consumos excessivos de substâncias não recomendadas a menores.
Chegara a altura de ponderar e desesperar, réu perante a minha consciência, qual fantasma do Natal Passado a bater à porta. As escolhas que tinham ditado este beco sem saída pareciam-me longínquas, difusas, como se tivessem sido ponderadas e executadas numa vida passada. Não havia defesa, não haviam provas nem testemunhas, apenas um dedo apontado e um fardo enorme a pesar. Um enorme pesar.
(Quando os sonhos morrem, dormir é um mero intervalo entre adormecer e despertar, um feixe de tempo insignificante. É assim que se fica submetido à execução de tarefas e actividades corriqueiras e monótonas. É assim que só se vive de dia, como uma engrenagem.)
Levantei-me e fui em direcção à casa de banho sem dar satisfações.
-Onde vais, Jacinto? – foram as palavras que não quis ouvir a Teresa pronunciar.
Acotovelei as pessoas que estavam na fila à espera de um “almoço mistério”. As ementas, não raras vezes, estão erradas e trazem surpresas desagradáveis…
Entrei na casa de banho e passei a cara por água, a ver se arrefecia os motores já quentes, de tanto matutar. Ali, sozinho, sentia-me muito mais calmo, o barulho era menor e conseguia ouvir os meus pensamentos. Talvez estivesse a ter apenas um dia mau. Às tantas era isso. Um dia demasiado stressante, com uma carga horária elevada, trabalhos para fazer… Uma folga era bem capaz de resolver. Faltava às aulas de tarde e ia passear sozinho para o Bom Jesus. Desenrascava um piquenique à maneira e ficava tudo porreiro. Um tempo só para mim enquanto contemplava a Natureza e os avós a brincar com os netos. Nem mais.
Apressei-me a regressar à mesa. Momentos depois, preparava-me para avisar a Teresa do que se iria suceder. Estava decidido a tirar umas horas para dedicar ao meu atarefado umbigo.
-Teresa, hoje…
-Não vês que agora estou a falar? Tem calma contigo…
Fiquei fulo. Senti um molho de parafusos a cair ao chão e três ou quatro fusíveis a plissar. A minha pachorra tinha dado as últimas. Primeiro ignoraram-me e agora opunham-se a qualquer intenção comunicativa da minha parte?
Não poucas vezes ouvi dizer: “Guardares aquilo que sentes dá azia”. Parecia que tinha chegado a hora de iniciar o programa de auto-ajuda para raivosos compulsivos. Só me apetecia mandar os tabuleiros pelo ar e fazer uma escandaleira em frente a toda a gente. (Qual seria a reacção das pessoas perante um fenómeno tão anormal como este? Às vezes ponho-me a pensar como é que as pessoas reagiriam se, durante uma cerimónia oficial, alguém ficasse doido e começasse às cabeçadas ao Presidente da República. Ou se, após receber a bênção, apalpassem o Papa. Um caso a estudar. Interessante…)
Controlei-me. Fixei o olhar na máquina das bebidas a tentar adivinhar qual seria o próximo botão a ser pressionado. Tentava a todo o custo pensar noutra coisa, a ver se acalmava. Porém, estava, inconscientemente, a semear problemas. Não fui suficientemente eficiente ou subtil. O meu olhar esgazeado não tardou a chamar a atenção.
-Estás um bocado com cara de parvo… – comentou a Teresa.
-Acontece-lhe frequentemente, pelos vistos… – realçou a meia-leca.
Foi o fim da picada. O emplastro, agora, também mandava bocas?
Quando me preparava para descarregar um chorrilho de insultos aparece uma personagem inesperada. Vinha aos encontrões, a mandar pessoas ao chão. Um ser trôpego com um porte daqueles não passa facilmente despercebido. Sôfrego e suado, pára à minha frente e encosta-se à máquina dos refrigerantes para descansar. Estava a tentar dizer-me algo mas não conseguia. Tentei acalma-lo.
-Xavier senta-te e respira um bocado antes de falar, pá! – aconselhei.
-Não…há…tempo…a perder…
O Xavier aproxima-se da mesa em que estávamos a almoçar, pega no resto da bebida do pigmeu e manda abaixo de golada. Limpa as beiças, arrota. Pede desculpa. Pega no queque da Teresa e enfarda aquilo numa trinca. Limpa as beiças, arrota. Pede desculpa. Levanta-se, dirige-se novamente à máquina de refrigerantes, tira uma lata e abre-a. Interpelo-o:
-Que foi, homem de Deus?
-A Luísa. Vou a Coimbra pedi-la em casamento…
Os meus pensamentos sofreram um solavanco. A minha vida podia estar confusa, mas o Xavier tinha-se passado de vez. Já não o via há algumas semanas. Talvez andasse em raves a meter ácidos e lhe estivesse a dar uma coisinha má. A alucinar. Ou então estava sob influência voodoo. De qualquer forma, como sempre, tentei saber de que forma podia ofertar os meus préstimos.
Perguntei-lhe: -E o que é que eu posso fazer por ti, rapaz?
Ainda sem ter recuperado completamente, tentou ser o mais claro possível:
-Preciso da tua companhia. Não posso fazer nenhuma asneira pelo caminho. É demasiado importante. Além disso, é sempre bom ter um comparsa para ajudar nos tempos difíceis, não é?
Um turbilhão de sensações trespassou-me. Tinha mil coisas para fazer, uma namorada com quem discutir, uma amostra grátis para insultar, meio mundo para mandar às urtigas. Estava numa encruzilhada. Por um lado, tinha a minha vidinha a precisar de umas afinações. Ia ser preciso tempo e paciência para resolver os assuntos, mas, no final, penso que ia conseguir resultados positivos. Por outro lado, podia embarcar numa daquelas aventuras tresloucadas com um dos tipos mais chalados que conheço, sem saber como ou porquê, pondo em prática um plano infalível porque inexistente.
Subitamente, provém, por trás de mim, um calor intenso. Volto-me. A Teresa está praticamente a deitar fumo. Dirige-se-me, em surdina, a ranger os dentes:
-Não estás a pensar em ir embora com este idiota, pois não, Jacinto Novais?
Voltei-me na direcção do Xavier. O rapaz estava com uma expressão que era um misto de esperança e aflição. Tinha de decidir rapidamente. Resolvi seguir o meu instinto. Era tralha que já não dava uso há algum tempo. A minha resposta acabou por ser a mais indicada, vinda de uma mente equilibrada e racional:
-Oupa!
(Fim)
Quem teve pachorra de ler que diga coisas, se fizer favor. A Administração agradece. Obrigado.
3 comentários:
Que giro! Eu ainda pensei em participar nessa competição mas so soube da sua existência alguns dias antes, e escrever à pressão raramente dá boa coisa!
Bem, quanto à obra acho que já tinha comentado a primeira "experiência", mas esta merece também um comentário, espero não me repetir...
(para já, e desculpa, mas tenho a mania de reparar em pormenores, tens um erro: não se diz "haviam" o verbo haver é defectivo e não se usa na terceira pessoa do plural)
"Para ser conciso, posso descrever-me como um «cão do mato» reformado " - "cão do mato" é forte...mas a explicação que dás de seguida serve para simplificar a "coisa".
"Nunca me dei com gente humilde. Os vaidosos são imbuídos de uma graça quase mística." - se calhar o Jacinto tem mesmo razão, mas ,na minha opinião somos todos um bocado, ou muito, vaidosos...logo, desse ponto de vista temos todos alguma mística.
"Um sujeito bastante ébrio costuma desequilibrar-se e cair, mas eu tinha-me aguentado verticalmente até aquele ponto." - gostei do pormenor "verticalmente", são estes pormenores que "dão vida" a um texto.
"Quando os sonhos morrem, dormir é um mero intervalo entre adormecer e despertar, um feixe de tempo insignificante." - a frase mais bonita e inspirada deste teu texto.
"Resolvi seguir o meu instinto. Era tralha que já não dava uso há algum tempo." - frase mordaz o suficiente para resumir a decisão talvez "não tão precipitada quanto isso" do Jacinto.
Não tenho tempo ou inspiração para mais...boa sorte para a competition!
xx
Pá, como dizem os americanos: Don't quit your day job. :P
Já continuavas a história não?
Enviar um comentário